Violência nos media e o 'síndroma do mundo mau'

Michael Morgan, Media Education Foundation, Universidade de Massachussets, entrevistado por David Packman.
David Packman - Estamos aqui para falar sobre o 'síndroma do mundo mau' (mean world syndrom), um documentário da Media Education Foundation. Tem havido muito debate ao longo dos anos sobre se ver filmes violentos ou jogar jogos de vídeo violentos torna as pessoas mais violentas. Eu costumava pensar que isso era lógico, mas pesquisas recentes mostram que não é bem esse o resultado. É verdade?

Michael Morgan - Bem, sim e não. Essa é a questão que tem dominado desde a década de 1950 e mesmo antes - na verdade começou na década de 20, com os filmes, depois com os 'comic books', depois com a televisão, a partir da década de 50. Mas é a questão errada. É a pergunta simples e óbvia. Mas a maneira como as coisas funcionam é que as redes conseguem focar as pessoas nessa questão e então vão continuamente descobrir que isso pode acontecer, talvez não a maior parte de nós mas algumas pessoas de vez em quando, mas não é o efeito mais comum... Mas o público está constantemente obcecado com isso, o Congresso (dos EUA) está obcecado com isso, o mundo inteiro está obcecado com isso. Nos anos 60, George Gerbner começou a pensar que talvez as coisas funcionassem de maneira ligeiramente diferente. Ele notou, pela análise de conteúdos que estava a fazer da violência na televisão, que há muito mais gente na televisão que é vítima de violência do que a perpretá-la. Há muito mais pessoas a sofrer violência do que a iniciá-la. E começou a pensar que está toda a gente tão preocupada com a possibilidade de as pessoas imitarem a violência que vêem mas é mais provável que se sintam identificadas com as vítimas. Pensem nisto: há 4 ou 5 actos de violência na televisão a cada hora...

DP - O que quer isso dizer? Num canal, num espectáculo?...

MM - Nos canais de televisão, em média, por hora. Há 5 ou 6 actos de violência por hora, há 70% dos personagems em cada semana envolvidos em violência... Se a imitação fosse a consequência mais provável, nós não precisariamos de fazer pesquisa, porque estariamos todos mortos. Nem toda a gente responde ao que vê indo matar os vizinhos. Mas o que Gerbner argumentou, e os dados que mostrou, foi que as pessoas que passam mais tempo a ver televisão não vão ser mais violentas, mas vão ser mais receosas. Vão ser mais desconfiadas, mais apreensivas quanto às outras pessoas. Vão ficar mais preocupadas com a hipótese de alguma violência ser exercida contra elas próprias. Isto mudou todo o debate. É um efeito muito mais penetrante/difuso (pervasive).

DP - Então, o argumento que se pode usar é de que as pessoas passam a ser mais cautelosas porque viram essas coisas a acontecer na televisão. Isso é assim tão mau?

MM - Bem, é um exagero! É uma super-estimulação, é algo que vai para além de ser apenas mais cuidadoso. Tem como resultado ser muito mais desconfiado, comprar muito mais armas, fechar-se atrás de portas trancadas mais do que o necessário. E leva a um sentimento de insegurança e de apreensão que justifica a suspensão de liberdades civis se isso der segurança às pessoas.

DP - Portanto, está a dizer que, afinal, podemos aceitar mais facilmente formas de sermos vigiados porque acreditamos que o mundo é um lugar mais perigoso, em parte por causa do que vemos na TV?

MM - Sim, contribui para esse sentimento de um mundo malvado e perigoso.

DP - E quais são os outros factores? porque estou certo que alguns dos nossos ouvintes estarão a dizer que sim, vi uns filmes que me fizeram pensar que crimes são cometidos maus regularmente do que são na verdade, mas não é realmente isso o que me faz pensar que é ok ter novos body scanners nos aeroportos...

MM - Os media não actuam isoladamente do resto da cultura. Os media agarram em certas tendências culturais, em certos valores, certas tomadas de posição e amplificam-os, partilham-os, reforçam-os, cultivam-os repetidamente. Estas coisas não são originadas pelos media. São valores culturais, políticos e económicos - os media são os 'braços' culturais da ordem industrial que os perpetua.

DP - Então, porque decidem estas redes de televisão meter 6 actos de violência por hora? É porque acreditam que as pessoas são entretidas por isso? Porque dá lucro?...

MM - Porque é altamente lucrativo, especialmente no mercado internacional. A maior parte do dinheiro dos programas de televisão (nos EUA) vem da distribuição (syndication) a qual, em grande medida, é internacional. Se tiveres comédia, não 'viaja' tão bem para outros países: as piadas são culturalmente específicas. Mas violência é muito barata e é entendida em todo o mundo muito facilmente. Portanto, porque é mais fácil de distribuir e vender noutros países, é por isso que há tanta (nesses programas de TV).

DP - Portanto, para cada sucesso pontual de programas como 'Os Simpsons' ou 'Seinfeld', fora dos EUA, podemos provavelmente encontrar o quê, 5 ou 10 séries do estilo 'Law and Order'?...

MM - Sim, é muito mais barato exportar violência.

DP - Se vamos pensar nisto mais como "vai fazer as pessoas acreditar que o mundo é mais perigoso para elas", podemos ligar isto ao aumento da venda de armas durante os últimos anos? Estava a pensar que uma parte desse fenómeno se deve à ideia de que "Barack Obama vai retirar-vos as armas, se um presidente do Partido Democrata for eleito, todas as regras vão mudar, as armas de assalto vão ser proibidas, portanto vamos obtê-las agora".

MM - A razão não é "ou isto ou aquilo" (either or). Não se excluem, podem ambas ser verdade.

DP - Podemos ter aqui outro factor, que é as pessoas possam acreditar que precisam de ter armas, independentemente de quais sejam as forças políticas que possam ou não deixá-las ter armas. É isso o que está a dizer?

MM - Sim, tudo se conjuga para todos os tipos de outros aspectos de representação. Porque não são apenas medos em abstracto. São medos de tipos específicos de pessoas, que são repetidamente mostradas como violentas. Não há nenhum outro grupo na televisão que seja mostrado como mais violento do que os latinos e os hispano-americanos. São mostrados como consistentemente violentos. É por isso que temos todo este discurso sobre os traficantes de drogas, sobre imigrantes ilegais... Medo de tipos específicos de pessoas. Árabes e muçulmanos são apresentados como terroristas violentos, os latinos são apresentados como extremamente violentos. Portanto, o medo é canalizado em direcções muito específicas.

DP - O efeito destes jogos de vídeo e filmes é mais significativo nas crianças do que nos adultos?

MM - Não descobrimos isso. Descobrimos resultados muito estáveis. Nós não estudamos crianças pequenas (outros estudos fazem-no) porque ainda não têm as competências (skills) necessárias para participar na nossa pesquisa. Mas estudámos jovens adolescentes e de idades superiores e não encontrámos diferenças particulares entre eles.

DP - O que podemos dizer de quem consome esse tipo de violência desde jovem? À medida que cresce, que outros factores podem mudar o comportamento? Por exemplo, não estamos num vácuo e se começarmos a consumir estas coisas com idade de 8, 10 ou 12, o que pode acontecer, que influências podem influir, se o que existe na rádio e na televisão é uma grande quantidade destas coisas? Como tirar as pessoas dessa mentalidade? É apenas com pensamento crítico? E nem toda a gente anda por aí com medo, não é?

MM - Não, não! O tipo de pesquisa que fazemos é de tendências em grandes grupos agregados. Não podemos pegar nesta pesquisa e aplicá-la a indivíduos. Há muita gente que comete violência e que nunca vê violência nos media. Muitas pessoas vêem as piores coisas e não as vão imitar. Não é aquele tipo de "macaco vê, macaco faz" (monkey see, monkey do), não estamos a falar daquela relação directa de estímulo-resposta.

DP - Mas a minha pergunta é quais são as outras forças que podemos identificar que possam actuar como factores mitigadores para fazer as pessoas sentirem que o mundo não está lá fora para as apanhar. Que mais podemos apontar aí? Porque tem razão, se formos apenas fans destes espectáculos televisivos e basicamente das notícias dominantes (mainstream), podemos ficar com a impressão de que isso é tudo o que existe. Relações familiares, outro tipo de filmes, leitura...?

MM - É uma pergunta muito interessante, porque normalmente as pessoas perguntam quais são as outras origens do medo, as outras fontes de ansiedade. As pessoas não perguntam o que pode atenuar o problema. E é difícil de saber, porque não encontramos muitos factores que reduzam a vulnerabilidade. O que encontramos - se olharmos por exemplo para grupos definidos pela educação, olhamos para os menos escolarizados (educated) e depois para os mais escolarizados... Poderia parecer que as pessoas com menos educação têm muito mais medo, sentem-se muito mais apreensivos e são muito mais desconfiados em geral, sem contar com o factor da televisão. E se olharmos para pessoas com mais educação, se não virem muita televisão não são tão medrosos, desconfiados e apreensivos. Mas se virem mais televisão, então são como os que têm menos educação. Portanto, o que temos é um tipo de homogeneização, de convergência, em que a importância do consumo de televisão vai ultrapassar os efeitos da educação. Portanto, não é realmente que factores vão atenuar os efeitos para as pessoas que estão mais expostas. Apenas diminuindo a exposição podemos mitigar o efeito.

DP - Se um pai quiser que os filhos não vejam televisão, há alguma forma de proteger alguém, seja de que idade for, e fazê-la não ficar exposta a esta paisagem mediática que existe?

MM - Só se não a deixar sair de casa e a fechar num quarto. Porque mesmo que não estejam a ver televisão, vivem numa cultura em que toda a gente vê, as suas vidas são dominadas pelos media. Portanto, se não apanhar a influência directamente, apanha-a indirectamente pelas suas interacções com as outras pessoas.

DP - Apreciadores de uma quantidade de programas que exibem violência dirão que "é um programa sobre crimes que são cometidos numa cidade, portanto assim que sintonizamos o programa naturalmente vamos ver crimes que são cometidos nessa cidade". Os programas não deviam ser transmitidos por isso? Como é que podemos ter os programas de entretenimento que as pessoas querem ver, sem criar esta cultura de medo?

MM - Não é uma questão de programas individuais, nem é uma questão de indivíduos. É uma questão de sistema e das instituições que criámos. Storytelling (contar histórias, narrativas) é um processo muito fundamental em qualquer cultura. É por esse processo que as pessoas aprendem acerca do mundo. É o processo pelo qual as pessoas aprendem acerca de se tornarem humanos e fazerem parte de uma sociedade. Sempre houve violência nas histórias - há violência em Shakespeare, há violência na Bíblia, há violência em cada lenda e conto de fadas... O que é diferente agora não é o facto de haver violência nas histórias, mas o facto de que nunca estivemos tão expostos a tanta violência como estamos agora. E o processo de storytelling está nas mãos de um pequeno grupo de corporações comerciais. Portanto, o problema não é haver histórias violentas por aí. É que o processo de contar histórias foi dominado por um pequeno número de corporações, conglomerados, e, porque não fazemos cumprir leis anti-concentração (anti-trust laws), a propriedade dos media foi ficando cada vez mais e mais concentrada. Então, não é uma questão de termos menos histórias violentas, mas sim de permitir a mais pessoas que possam contar histórias.

DP - Independentemente dessa consolidação dos media (ou não), se as histórias violentas são as que dão mais lucro, mesmo que houvesse mais intervenientes (players) no mercado, não iriam todos querer contar as mesmas histórias?

MM - Não, porque o processo não tem que ser sempre conduzido por uma orientação de mercado. Na maior parte do resto do mundo (fora dos EUA) os media não foram desenvolvidos para serem pagos por publicidade de privados, mas sim por financiamento público. Apoiam-se escolas públicas, bibliotecas públicas, parques públicos... Os media foram vistos como uma função de serviço público, da mesma forma. Mas nós não conseguimos conceber (nos EUA) outro tipo de media que não a suportada por publicidade...

DP - Mas vamos supor que conseguíamos e que tinhamos mais escolhas que não envolvessem violência. Se as mais interessantes continuam a ser as que contêm violência...

MM - Mas não são sempre as mais interessantes! Muitas vezes os programas violentos têm audiências baixas. São é mais baratos de produzir.

DP - Interessante. Então não há indicação de que as únicas coisas que vão resultar bem são este tipo de programas?

MM - Não, de todo.

DP - Mas é o que passa no "prime time" dos canais que a maior parte das pessoas tem...

MM - E os programas mais populares raramente são violentos. American Idol (Ídolos, na versão portuguesa), ou algo assim... São violentos noutro sentido. Mas a violência de que estamos a falar raramente tem programas de topo de audiência. Não são vistos mais do que qualquer outra coisa, mas dominam o ambiente simbólico em termos de quantidade.

DP - Temos falado principalmente sobre programas de ficção. Mas sobre as notícias? Obviamente há uma selecção... Se tivermos uma hora de noticiário e descontarmos 12 minutos para publicidade, ficamos com 48 minutos. Qual é o processo que leva a que existam mais histórias violentas aí?

MM - Especialmente em termos de notícias locais, são os que fazem melhor o trabalho de agarrar as notícias de fogos, assassinatos, violações, desaparecimentos... As notícias locais são dominadas por isso. Mas, interessantemente, há um certo número de estudos que mostrou muito claramente que a quantidade de violência nas notícias locais de uma comunidade não está relacionada com a quantidade real de violência nessa comunidade. E que os níveis de medo e desconfiança e apreensão nessa comunidade estão relacionados mais com as notícias do que com a real quantidade de violência. Portanto, não é esta noção de que "a violência está lá fora e as notícias apenas a reflectem". Não, isso é feito puramente como um meio para atrair audiências, para as agarrar. Porque as notícias locais são o mais rentável programa para as estações locais.

DP - Portanto, num certo sentido, e estava a falar especialmente nas notícias locais, mas em todos os serviços de notícias há talvez 19 ou 21 minutos, se houver 1 assassinato ou se houver 5, presumidamente terá a mesma fatia dessa emissão? Sabemos que a meteorologia é muito popular nas notícias locais, têm cerca de 7 minutos, depois temos um par de minutos de notícias relacionadas com escola... Independentemente do número de assassinatos que tenham acontecido, o tema irá ter sempre a mesma percentagem de tempo de divulgação, e é daí que vem essa desproporção?

MM - Sim, penso que em algumas áreas onde houver maior competitividade pelas audiências, serão instruídos para injectar mais fogos, mortes, violações, etc., porque querem manter os espectadores interessados. Principalmente quando metem aqueles pequenos "teaser" dizendo coisas como "descubra em que bairro da vizinhança foi alguém violado hoje". A distinção entre notícia e entretenimento não é realmente muito importante.

DP - E está a ficar cada vez mais esbatida.

MM - Sim, sim.

DP - Falámos de mais procura de armas em resultado desta cultura de medo que foi criada. Que outras consequências específicas existem?

MM - Bem, nós não fizemos um estudo para esta guerra do Iraque mais recente, mas fizemos um para a guerra anterior. E foi muito impressionante. As pessoas que viam mais televisão, mais notícias, mais drama e mais entretenimento, apoiavam mais a guerra contra Saddam Hussein. E também quanto mais viam menos sabiam. Tinham menor entendimento sobre os assuntos e acreditavam mais na propaganda.

DP - Quanto mais viam o quê, programas de ficção ou notícias?

MM - Ambos.

DP - Quem via mais notícias regularmente tinha maiores equívocos?

MM - Sim, e tinham maior probabilidade de ver a violência como uma ferramenta justificável para resolver problemas.

DP - Portanto, essencialmente isto está a conduzir a uma cultura onde sobretudo é mais aceitável que violência real seja cometida?

MM - Certo.

DP - Não apenas... Bem, há sempre a possibilidade de a violência ser cometida contra ti, mas quando o teu país entra num conflito, o teu parâmetro para o que é aceitável muda como resultado?

MM - Há de longe maior apoio à guerra entre aqueles que estão expostos aos media.



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